Quando
tudo começou
— É bom a senhora ir aprendendo Braille,
porque o seu filho vai ficar cego, antes mesmo, de chegar á idade escolar.
Minha mãe ouviu isto, e sentiu como se
uma bomba caísse bem em cima da sua cabeça; como se um buraco enorme se abriu sob
seus pés, e ela foi caindo, caindo...
Ela sempre sonhou em casar com o
primeiro e único amor da sua vida, ter um casal de filhos, decorar seu lar,
cozinhar para todos, costurar..., Enfim, ter uma família daquelas que inspiram
os comerciais de margarina...
Até este momento, tudo corria conforme os
seus planos, os seus sonhos. Inclusive, a gravidez do segundo filho (eu), tinha
sido planejada, combinanda com a irmã, para que quando meus avós voltassem de
uma longa viagem à Euroma.
Assim que meus avós chegaram, as duas
deram as notícias: estavam grávidas!
Depois de ter um menino, meus pais
gostariam que o segundo filho fosse uma menina, e...
Cheguei!
Uma tia, pegou nas minhas mãozinhas e
comentou:
— Será que estas mãozinhas serão tão
habilidosas quanto as da mamãe?
A vida corria naturalmente até que, quando
eu já estava com 6 meses e meu irmão com 3 anos, nosso avô paterno, começou
perceber que se alguma coisa estava fora do lugar, um brinquedo no meio do
caminho, uma porta de armário aberta... Meu irmão batia, e muitas vezes, se
machucava.
— Acho que este menino não está
enxergando muito bem... Seria bom você leva-lo à um oculista.
E foi assim que o mundo dos meus pais,
pareceu desmoronar.
Esse oftalmologista deu a notícia nua e
cruamente, e perguntou se minha mãe tinha mais filhos, e continuou na sua
insensibilidade:
— A senhora tem mais filhos? — ele
perguntou sem sequer perceber o estado de choque da minha mãe.
Ela fez que sim, gesticulando com a
cabeça e balbuciou:
— Uma menina de seis meses...
E o médico continuou, insensível:
— Provavelmente, a menina tem o mesmo
problema: Retinose Pigmentear. Uma doença degenerativa e progressiva, que
atinge a retina.
Minha mãe, voltou para casa, arrasada, e
quando contou ao meu pai, resolveram pedir a opinião de um tio, médico.
— Calma. — Ele disse, tentando transmitir
tranqüilidade — nos casos de um diagnóstico terrível como este, a gente deve
sempre procurar, pelo menos, uma segunda opinião.
Ele continuou:
— É um colega do Hospital São Paulo. Um
professor de oftalmologia, muito competente.
Ele pegou o telefone, dizendo:
— Vou ligar para ele, contar o que
houve, e pedir que marque uma consulta para vocês.
Este oftalmologista, foi a melhor coisa
que poderia acontecer em nossas vidas!
Foi Deus quem inspirou meu tio para que
ele indicasso o doutor Renato de Toledo.
Ele não era apenas o nosso
oftalmologista.
Durante 27 anos, ele foi um grande
norteador das nossas vidas.
— Realmente, eles são portadores de
Retinose Pigmentar. São manchas na retina, causadas pela falta de pigmentação,
que comprometem o campo visual e a cegueira noturna — ele explicou para os meus
pais, e continuou:
— No caso deles, as manchas na retina
são perifériacas e não estão comprometendo a visão central, felizmente. Com 40%
de campo visual, eles vão poder ter uma vida, praticamente, normal por muito
tempo. Vamos segurar a doenãça com as mãos — e fez um gesto com as mãos, como
se tivesse segurando um passarinho, delicadamente — com acompanhamento,
vitaminas, etc...
— Como o caso deles é congênito (de
nascença), a tendência, é que a evolução seja muito lenta.
O primeiro grande conselho que o Dr
Renato deu aos meus pais, foi:
— Muito cuidado com a superproteção.
muito comum nestes casos. Deixe que ELES sintam os seus próprios limites.
Tão importante quanto este grande
conselho, foi a coragem dos meus pais em acatá-lo.
Pelas circunstancias, infelizmente, meu
pai só o reencontrou aos 40 anos, quando precisou usar óculos por causa da chegada
da presbiopia.
Meus pais nos incentivaram a usar os óculos,
e eu, que sonhava em ser professora, usaram o argumento perfeito.
— Voce vai ficar com cara de professora,
usando seu óculos...
Minha mãe sempre lembra da primeira vez,
em uma ótica que ficava ao lado do consultório do Dr Renato, a Casa Gomes,
Experimentei 2 óculos do mesmo estilo,
modernos, quase iguais, mas um era nacional, outro importado que custavam cinco
vezes mais caros.
Gostei dos importados, sem saber.
Minha mãe tentou me convencer de que
eram praticamente idênticos, mas eu respondi, no “alto da sabedoria” dos meus 7
anos:
‒ Ah, mas estes são muito mais confortáveis...!
O dono da ótica e minha mãe, se
entreolharam e não conseguiram conter as risadas.
Assim, tivemos uma infância rica em
aprendizados, tombos, joelhos estourados, como qualquer criança.
Aprendemos andar de bicicleta, patinar,
etc,,, Apenas. não podíamos fazer esportes. Mas as escolhas foram sendo feitas
naturalmente.
Meu irmão e eu, bem que tantamos, jogar
tamboréu (um tipo de tênis), mas eu nunca consegui acertar UMA bolinha!
Passávamos mais tempo montando a rede na
quadra que fazia parte da propriedade dos meus avós, onde morávamos, e que
virou um espécie de condomínio familiar, do que jogando.
Enfim, o diagnóstico daquele primeiro
médico, graças â Deus, não se cumpriu, e nunca nos sentimos diferentes dos
outros, embora tivéssemos verdadeiros “anjos-da-guarda” que nos auxiliavam o
tempo todo, isto acontecia de forma natural e imperceptível.
Acho que posso dizer que a Retinose fez com
que tivéssemos vivencias ricas e divertidas, que se transformaram em histórias
para serem contadas e sempre relembradas.